Por OluTimehin Kukoyi
Lembro-me da primeira vez que embarquei no Feminismo negro, feito unha e carne. Foi em setembro de 2016, e eu havia-me juntado a outras 200 pessoas na costa baiana do Oceano Atlântico para ter um gostinho de um sonho selvagem: o único, o Fórum Feminista Negra. Estava à beira de fazer 25 anos, e pela primeira vez vivi a possibilidade de uma realidade em que todas as necessidades são satisfeitas, todas as alegrias são protegidas, e todas as pessoas são livres. A minha vida não tem sido a mesma desde então.
Durante os cinco anos desde o FFN (Fórum Feminista Negra), a realidade tem vindo a piorar para centenas de milhares de nós. Os movimentos feministas Negras que trabalham para criar uma forma melhor também não foram poupados. A nossa resistência à opressão e à morte inoportuna do nosso povo continua a ser enfrentada com violência militarizada. Os direitos das mulheres, raparigas, pessoas LHBTG+ (Lésbicas, Homossexuais, Bissexuais, Transexuais, Gays), povos indígenas e trabalhadores da indústria hoteleira, doméstica, sexual e agrícola estão a ser suprimidos. As líderes feministas Negras estão a ser assassinadas ou – de forma desoladora – a abandonar os nossos princípios e políticas, de forma a obter ganhos pessoais. A emergência climática tornou-se um evento de extinção em massa para milhares de espécies, e aparentemente, não parece incomodar o Homo Sapiens o facto de que em breve poderemos estar entre esses números. E o fracasso dos nossos vários governos em gerir a pandemia da COVID-19, acaba por acrescentar um novo aspeto à forma como o mundo tem vindo-se a definhar para muitos de nós, todos os dias.
No entanto, o sonho que eu comecei a viver, ainda como uma jovem de 24 anos, com brilho nos olhos ainda está vivo, embora alguns dos que o sonharam também, tal como a amada Deborah Holmes, já não se encontra entre os vivos. Esse sonho tomou-se a forma do Fundo
Feminista Negra, uma nova entidade que existe para canalizar recursos para os movimentos e pessoas mais suscetíveis de transformar a sociedade, mas com pouca probabilidade de ser financiado ou protegido neste trabalho de transformação.
Há gerações que as feministas Negras têm vindo a reorientar o mundo no sentido da justiça com um orçamento limitado. Mas não era necessário ter acontecido dessa forma. Os recursos são importantes, mesmo que não sejam a coisa mais importante. As feministas Negras sabem que o dinheiro não é a solução, porque sempre tivemos exponencialmente menos dinheiro, em comparação com os outros. Não fomos forçadas a moldar a liberdade
com ferramentas contundentes e carteiras a quatro quintos de estarem vazias? Somos nós que vamos passar a mesma nota de vinte dólares de mão em mão até ser mais macia do que os cabelos de um bébé, e continuar sempre a fazer o mesmo. Nós sabemos como ficar livres. Também sabemos que chegaremos lá mais depressa, se os nossos movimentos tiverem os recursos para manter o nosso povo seguro; alojar, alimentar e proteger as nossas
comunidades, e para expandir os modelos de sobrevivência coletiva que nos mantêm vivos num mundo hostil.
O financiamento não cria movimentos, mas o financiamento responsável pode mantê-los em movimento. Um financiamento responsável, tal como o que o Fundo Feminista Negra pretende proporcionar, facilitar a tarefa dos movimentos feministas Negras, para que possam continuar a trabalhar em conjunto através de barreiras aparentemente intransponíveis. Permitirá um fracasso mais produtivo, uma vitória mais impactante, e mais estabilidade na árdua jornada de tornar este mundo seguro para todos os que nele vivem. O financiamento feminista Negra diz aos movimentos feministas Negras o que o fórum feminista Negra disse-me há tantos anos atrás: você é a prioridade.
Numa dessas noites inesquecíveis em setembro de 2016, sentei-me até não se ouvir mais o cantar dos grilos, ia ouvindo as histórias, enquanto passavam de boca em boca bonita. Éramos 12 ou talvez 15 sentadas juntas, debatendo pontos de recuperação transcontinentais e entre gerações, pontos de cura e sobrevivência através da comunidade. Nessa noite, as feministas Negras fizeram uma sala sagrada a partir de uma cafetaria do
resort. Essa sala, continha um tipo de magia que acontece quando os mais marginalizados entre nós, se deslocam até nós para ver que somos a prioridade. Não houve medo, não houve domínio, nem houve nada em falta. Havia apenas liberdade. Liberdade que todos nós levámos para casa connosco. Liberdade cujo o objetivo é, até hoje, libertar outras como nós, através de nós.
Isto é o que acontece quando os sonhos das feministas Negras têm bons recursos e são capazes de se tornarem realidade à sua escala real. As feministas Negras criarem centros a partir de margens de forma poderosa, e os efeitos cascata são infinitos. Dentro dos nossos movimentos, põe-se a tónica na solidariedade e na mutualidade, apesar da resistência esmagadora e mesmo assassina das forças que nos põem umas contra as outras. As
feministas Negras organizando – a sabedoria feminista Negra – tem a audácia de olhar nos olhos das máquinas que causam mortes e dizer-lhes que um dia, acabarão por falhar, porque estamos empenhadas no tipo de trabalho que alimenta a insistência desafiadora de ter mais vida.
O feminismo Negro proporciona-nos uma linguagem, para que possamos fazer face à forma como o mundo tenta transformar os nossos corpos em gaiolas, e depois escrever os nossos nomes na fechadura. Os movimentos feministas Negras dão-nos a alegria e a segurança de uma forte irmandade. Dentro dos nossos movimentos estamos sempre a saltar ousadamente para a frente em território desconhecido, e a ser sempre apanhadas
pela verdade da liberdade do outro lado. Nós sabemos no nosso íntimo que, apesar da hostilidade que existe no mundo, estamos a salvo. Somos preciosas. Nós somos a prioridade. E nas sociedades que só querem nos suprimir, sujeitar-nos à servidão e à violência, é tão importante para que nós sejamos capazes de nos ensinar umas às outras que somos a prioridade.
O feminismo Negro é o sabor inesquecível do amor sem dominação, a abundância sem exploração, a comunidade sem violência. Ensina-nos a arrancar-nos das garras de sistemas concebidos para apagar os nossos espíritos, cortar as nossas línguas e sermos enterrados, após enterrarmos os corpos dos nossos filhos. Como feministas Negras, lutamos honestamente com a verdade e a dor de sermos humanas; de sermos dignas e de trabalharmos para traduzir isso em todas as facetas da vida.
O feminismo Negro exige que falhemos de uma forma produtiva; e mesmo quando nos esquecemos de deixarmos o raciocínio destrutivo à porta, simplesmente pedimos perdão e trabalhamos para corrigir os erros assim cometidos. E porque continuamos a progredir com base no trabalho que já havia sido feito anteriormente, e tendo como referência os rabalhadores que nos precederam, nunca estamos perdidas. Há sempre alguém que nos pode mostrar o caminho; através de livros, música, histórias, amizade; através de linhas de sangue, de imagens esquecidas, nas esquinas das ruas. Nunca temos de ser as primeiras ou os únicas, porque nunca estamos sozinhas.
O feminismo Negro liberta-nos das mentiras que nos foram contadas sobre os limites dos nossos destinos, para que nos possamos tornar em tudo o que nós somos, consoante uma vida inteira nos permitirá. Acabamos por conhecer milhares de formas de sermos nós, formas que ultrapassam cada rosto que a desumanização desgastou. Descobrimos que somos insubmersíveis, como os nomes que seguiram com as crianças raptadas do nosso
continente através dos oceanos e que ressuscitaram quando avistaram terra seca. Somos poderosamente fortes, como os grãos de arroz entrelaçados no nosso cabelo nas Caraíbas, para não pudéssemos passar fome, só porque os escravizadores queriam que tal acontecesse. Tal como a flor índigo deixa manchas, nós também deixamos manchas através de histórias, e em tudo o que tocamos, produzindo permanentemente beleza onde
antes simplesmente não havia nada.
Este é o trabalho que os movimentos feministas Negras fazem. Não resistimos simplesmente; transformamo-nos. Os nossos movimentos lembram a todos que a liberdade se estende profundamente no passado e ainda mais para o futuro, mais do que tudo o que este mundo tem olhos para ver, ou mãos para roubar. Afinal de contas – como Deborah Holmes disse – dançar não é liberdade? E uma canção? E a poesia tecida no couro
cabeludo, a história tatuada na pele, a casa revelando-se na forma de uma testa, a ponte de um nariz, o comprimento de um pescoço?
E as mães, para que não vissem o sofrimento dos seus bebés, encaminharam-nos tranquilamente para fora deste mundo? E as crianças que viram as suas mães sofrer neste mundo e construíram lugares seguros a partir do nada para que outros não sofressem? Ou irmãs, irmãos, que se conhecem não através de uma linhagem de sangue, mas através de uma promessa: eu não sou livre até que vocês também o sejam. E nós? que estamos aqui
prontas e à espera de construir mais liberdades através dos legados que nos foram confiados?
O feminismo Negro mostra-nos como atravessar o tempo e o espaço para que todas possamos viver simultaneamente o sonho e a realidade da nossa liberdade coletiva. Desta forma, o Fundo Feminista Negra é o legado que herdámos; tanto como é o culminar de um sonho coletivo; tanto como é a promessa de um futuro melhor. E agora, está aqui. Que dom precioso – que milagre mágico – viver numa época em que os sonhos das feministas Negras
são mais facilmente concretizados. Mais facilmente tornados reais, prontos e capazes de nos sustentar até que todos saibamos no mais profundo dos nossos espíritos que somos a prioridade, e que podemos ser livres.